Por Urias Martiniano Neto
A Medida Provisória 688, de 18 de agosto
de 2015[1], trata da (a) repactuação do risco hidrológico de geração de
energia elétrica, (b) instituição da bonificação pela outorga, bem como (c)
alteração das leis 10.848/2004[2], 12.783/2013[3], e a 9.478/1997[4].
O presente artigo tratará
dos efeitos da repactuação do risco hidrológico de geração de energia elétrica.
Em que pese o governo
federal não tenha assumido os efeitos financeiros da Medida Provisória 688/2015
serão suportados pelos consumidores do Sistema Interligado Nacional (SIN), seja
via Bandeiras Tarifárias ou Encargo de Energia de Reserva (EER).
Ou seja, mesmo com o momento delicado da
economia brasileira, o governo federal transferiu o ônus de sua incapacidade
para os consumidores.
Histórico
A repactuação prevista na referida MP é
fruto da geração abaixo da Garantia Física das Usinas Hidrelétricas que compõe
o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).
O MRE é um instrumento
concebido para compartilhar entre seus integrantes os riscos financeiros
associados à comercialização de energia pelas usinas hidrelétricas despachadas
de modo centralizado e otimizado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico
(NOS), uma vez que a água é compartilhada por todos e o seu uso não é gerido
pelo proprietário da usina.
Portanto, o MRE minimiza e
compartilha entre os agentes integrantes o risco de venda de energia em longo
prazo.
No atual momento, verifica-se uma
insuficiência da geração total das usinas hidrelétricas em relação à garantia
física total do MRE - essa relação é conhecida como Generation Scaling
Factor (GSF).
Portanto, o déficit no GFS
causou uma exposição financeira de aproximadamente R$ 12,5 bilhões no âmbito da
Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) no ano de 2015.
Em face desses impactos, as
usinas hidrelétricas do MRE recorreram ao Judiciário e obtiveram decisões
favoráveis para (a) limitar o GSF em 95% da garantia física ou (b) determinar
que a Aneel abstenha-se de proceder o ajuste do MRE (GSF).
A judicialização da questão
gerou aproximadamente 44 ações judiciais, obrigando o governo a buscar uma
solução para a questão.
Diferentemente do que o
setor elétrico está acostumado, a solução para o GSF foi desenvolvida em
conjunto com as associações, agentes e governo federal, sendo um excelente
precedente.
Sem dúvida, é um ponto
positivo da MP 688/2015, porém, diferentemente do que governo federal afirma,
os consumidores serão impactados pela repactuação do risco hidrológico de
geração de energia elétrica, conforme será verificado a seguir.
Repactuação do risco hidrológico de
geração de energia elétrica
O artigo 1º da MP 688/2015 prevê que “Artigo 1º: O risco hidrológico
suportado pelos agentes de geração hidrelétrica participantes do Mecanismo de
Realocação de Energia (MRE) poderá ser repactuado pelos geradores, desde que
haja anuência da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com efeitos a
partir de 1º de janeiro de 2015, mediante contrapartida dos agentes de
geração hidrelétrica”.
Depreende-se do artigo 1º
que a repactuação é facultativa, devendo os agentes geradores interessados
celebrarem o contrato de cessão de risco hidrológico, cujos efeitos irão
abarcar as contabilizações de janeiro de 2015 em diante.
Cabe ressaltar que existem dois modelos de
contratos disponibilizados na reabertura da Audiência Pública Aneel - AP
32/2015[5].
A propósito a segunda fase
da AP 32/2015 visa obter subsídios com a finalidade de aprimorar os
instrumentos para a repactuação, cujo período de contribuição é de 20/8/2015
até 8/9/2015.
Tendo em vista a relevância
do assunto e os impactos envolvidos seria extremamente prudente que (a) a
segunda fase da AP 32/2015 tivesse um prazo de 30 dias e (b) fosse elaborada e
apresentada à Análise de Impacto Regulatório (AIR), porém nenhum dos dois foram
observados.
Contratos do Ambiente de Contratação
Regulada (ACR)
Pois bem. O parágrafo 1º do artigo 1º trata do risco hidrológico associado aos
contratos do Ambiente de Contratação Regulada (ACR), que será suportado pela
Conta Centralizadora dos
Recursos de Bandeiras Tarifárias. Vejamos:
“§ 1o O
risco hidrológico repactuado, relativo à energia contratada no Ambiente de Contratação
Regulada de que trata o art. 2o da Lei no 10.848, de 15
de março de 2004, será coberto pela Conta Centralizadora dos Recursos de
Bandeiras Tarifárias, observadas as seguintes condições:
I - pagamento de prêmio de risco pelos
geradores hidrelétricos, a ser aportado em favor da Conta Centralizadora dos
Recursos de Bandeiras Tarifárias; e
II - cessão para a Conta Centralizadora
dos Recursos de Bandeiras Tarifárias dos direitos e das obrigações dos
geradores referentes, respectivamente, à liquidação da energia secundária e ao
deslocamento de geração hidrelétrica, decorrentes de ajustes do MRE, no Mercado
de Curto Prazo”.
Observa-se que o risco somente será
coberto pela Conta das Bandeiras Tarifárias, caso:
1. as geradoras efetuem o pagamento de prêmio de risco à Conta
(valor será definido na segunda fase da AP 32/2015, porém é notório que o
referido montante será menor que a exposição ao Mercado de Curto Prazo (MCP),
logo os agentes cativos arcarão com a diferença, portanto serão impactos pelos
efeitos da MP); e
2. a cessão para Conta das Bandeiras Tarifárias não se limitará ao
déficit do GSF, eventual montante recebido no MRE será destinado à Conta.
A MP prevê, ainda, que os
agentes geradores farão jus ao ressarcimento decorrente da exposição no MC,
para o ano de 2015, sendo possibilitado, caso os prazos dos contratos não sejam
suficientes para o ressarcimento, a extensão das outorgas por até 15 anos.
Contratos do Ambiente de Contratação
Livre (ACL)
Já o risco hidrológico associado aos contratos do Ambiente de Contratação Livre
(ACL) será suportado pela Conta de Energia de Reserva (Coner), conforme artigo
a seguir:
“§ 4º A parcela do
risco hidrológico vinculado à energia não contratada no Ambiente de Contratação
Regulada será repactuada por meio da assunção pelos agentes de geração de
direitos e obrigações vinculados à energia de reserva de que trata o art. 3º- A da Lei nº 10.848, de 2004, observadas as
seguintes condições:
I - pagamento de prêmio de risco pelos
geradores hidrelétricos a ser aportado na Conta de Energia de Reserva (Coner);
II - contratação voluntária pelos
agentes de geração, de reserva de capacidade de geração específica para a
mitigação do risco hidrológico, que poderá ser definida pelo Ministério de
Minas e Energia, a partir de estudo realizado pela Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), cujos custos não serão rateados com os usuários finais de
energia de reserva do Sistema Interligado Nacional - SIN; e
III - ressarcimento da diferença entre
as receitas e os custos associados à energia de reserva de que trata o inciso II
por meio da extensão do prazo das outorgas vigentes, limitado a 15 anos”.
A sistemática é similar ao procedimento
das Conta das Bandeiras Tarifárias, já que:
1. a cessão para Coner não se limitará ao déficit do GSF, eventual
montante recebido será destinado à Conta;
2. as geradoras efetuarão o pagamento de prêmio de risco à Coner
(valor será definido na segunda fase da AP 32/2015, porém o referido montante
será menor que a exposição ao MCP, logo os consumidores livres/especiais também
arcarão com a diferença); e
3. os geradores deverão contratar energia elétrica, como reserva de
capacidade, a fim de mitigar eventuais déficit de geração, cujo valor não será
suportado pelos consumidores livres/especiais.
A MP prevê, também, a
possibilidade de extensão do prazo das outorgas por até 15 anos, permitindo o
direito de celebração de contrato de energia no ACR.
Pois bem, um ponto essencial da MP é o
desvio de função da Coner, esbarrando até no aspecto de legalidade, já que o
Decreto 6.353/2008[6], em seu artigo 5º, não prevê a destinação dos montantes da
Coner para pagamento dos débitos do MCP, oriundo do risco hidrológico do MRE.
Vejamos:
“Art. 5º A CCEE
deverá manter Conta de Energia de Reserva - Coner, conforme disciplina
específica da Aneel, a qual deverá observar, entre outras, as seguintes
finalidades e diretrizes:
I - receber o EER;
II - efetuar os pagamentos devidos aos agentes vendedores, nos termos
dos CER;
II - receber os valores pagos a título de penalidades relativas à
Energia de Reserva;
IV - receber os valores relativos à inadimplência no pagamento do
EER;
V - receber os valores da Energia de Reserva liquidados no Mercado de
Curto Prazo, nos termos do § 1º do art. 4º deste Decreto; e
VI - ressarcir os custos de estruturação e de gestão dos Contratos e da Conta
de que trata este Decreto”.
Em que pese o artigo 5º possua a
expressão “entre outras”, deve-se ter cuidado ao aplicar tal termo, pois
sua referência está ligada à finalidade e assuntos correlatos à Coner, o que
não ocorre no caso de repactuação do risco hidrológico, logo sua legalidade
poderá ser levada ao judiciário.
Segunda fase da Audiência Pública Aneel
32/2015
A Medida Provisória dispõe, ainda, em seu parágrafo 7o,
que “a Aneel estabelecerá o prêmio de risco, os preços de
referência e a taxa de desconto de que trata esse artigo”.
Em consonância com a MP, destacam-se
alguns pontos da audiência pública:
1. a Aneel recomenda ao MME que os novos contratos regulados de
venda de energia elétrica de fonte hidrelétrica sejam celebrados na modalidade
por disponibilidade de energia, situação em que o risco é assumido pelos
compradores;
2. contrato de cessão do ACL – (a) os excedentes dos
usuários da Energia de Reserva serão destinados aos geradores, (b) pagamento do
prêmio será realizado a partir de janeiro de 2016; e (c) vigência de até três
anos.
3. contrato de cessão do ACR – a vigência
do acordo será igual ao prazo remanescente das outorgas de cada gerador.
Nesse sentido, será
necessário aguardar a conclusão da segunda fase da AP para que se tenha uma
definição dos valores a título de prêmio, da sistemática definitiva e eventuais
geradores interessados na repactuação.
Considerações finais da Medida
Provisória 688/2015
Destacam-se, ainda, três pontos da MP:
1. O parágrafo 8º prevê que “as revisões ordinárias de garantia
física das usinas participantes do MRE que impliquem alteração da garantia
física utilizada como base para a repactuação do risco hidrológico”, poderão
ensejar alteração, pela Aneel, do preço dos contratos que tiverem a extensão da
outorga, repassando o risco ao consumidor.
2. Em decorrência da grande onda de judicialização, a MP condiciona
a repactuação à desistência das ações judiciais, bem como renúncia “a qualquer
alegação de direito sobre a qual se funde a referida ação, protocolando
requerimento de extinção do processo com resolução do mérito, ficando
dispensados os honorários advocatícios em razão da extinção da ação”, conforme
parágrafo 9º.
3. Altera a Lei 10.848/2004, para considerar o compartilhamento
parcial do risco hidrológico pelos compradores, nos contratos de quantidade,
com direito de repasse às tarifas dos consumidores finais.
Conclusão
Deste modo, resta evidente que os consumidores suportarão os ônus financeiros
da falta de planejamento e investimentos do país.
Na prática, o impacto será
materializado para os consumidores cativos pela necessidade de uso das
bandeiras tarifárias e para os consumidores livres/especiais pela necessidade
de recolher o EER ou deixar de receber a restituição do excedente da Coner.
É importante destacar que a
justificativa do Ministério de Minas e Energia (MME) para alegar que os
consumidores não serão impactados está respaldada no fato da subtração do
pagamento dos prêmios e da liquidação da energia secundária.
Portanto, do ponto de vista
jurídico-regulatório, a impressão que a MP 688/2015 transmite é que mais uma
vez o governo atuou de forma pontual para resolução de um problema,
havendo o risco de desencadear novas complicações.
Por fim, a Medida
Provisória 688/2015 trata, ainda, da bonificação pela outorga de concessão de
geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.
Urias
Martiniano Neto é advogado especializado na área de energia elétrica.
Fonte: Revista
Consultor Jurídico, 31 de agosto de 2015, 8h05