Por Cid Tomanik
Em contratos de fornecimento de gás canalizado, especialmente com consumidores industriais e comerciais de médio e grande porte, é comum observar cláusulas que estabelecem penalidades operacionais e compromissos mínimos de pagamento, como o chamado take or pay.
Para muitos, esses dispositivos têm uma natureza meramente contratual, inseridos como instrumentos de disciplina operacional ou proteção à concessionária. No entanto, sob a ótica contábil, essas previsões revelam riscos relevantes, muitas vezes negligenciados, que afetam diretamente o resultado, a saúde financeira e a qualidade da informação contábil das empresas usuárias.
As chamadas multas operacionais previstas em razão de infrações técnicas, como ultrapassagem de limites de consumo, falhas em equipamentos de medição ou descumprimento de padrões de segurança, são geralmente aplicadas de forma direta na fatura mensal pela concessionária.
A recorrência dessa prática, ainda que contratualmente respaldada, exige do contador uma postura proativa. Essas penalidades não são apenas “ajustes de cobrança”, mas sim despesas operacionais reconhecíveis por competência, com impacto direto no resultado do exercício. Ignorar sua materialidade pode levar a distorções contábeis, principalmente quando somadas ao longo do ano.
Além disso, essas multas funcionam como indicadores de falha de gestão contratual. Quando frequentes, revelam problemas na governança do consumo energético e fragilidade nos controles internos da empresa.
O contador, nesses casos, não pode atuar de forma isolada. É necessário coordenar-se com as áreas técnica, jurídica e de suprimentos para mapear a causa das penalidades e sua prevenção, assegurando a consistência entre o que é registrado, o que é contratado e o que é efetivamente consumido.
Ainda mais delicada do ponto de vista contábil é a cláusula take or pay, que obriga o consumidor a pagar por determinado volume de gás, mesmo que não o utilize integralmente.
O tratamento contábil dessa obrigação depende da existência e da efetividade do direito de recuperação futura desse volume. Se houver cláusula de make-up gas, ou seja, a possibilidade de recuperar o gás pago e não consumido em períodos posteriores, esse valor pode ser registrado como ativo realizável.
Caso contrário, deve ser reconhecido diretamente como despesa, o que pode afetar significativamente os indicadores financeiros da empresa, especialmente em exercícios com variação de demanda.
O problema é que nem sempre a cláusula contratual de recuperação é efetiva na prática. Por vezes, o consumidor não dispõe de capacidade técnica para recuperar o volume, ou o prazo contratual se esgota antes disso. Nessas situações, o ativo se torna irrealizável e deve ser objeto de teste de recuperação (impairment).
O não reconhecimento tempestivo dessa perda pode levar a questionamentos de auditoria e comprometer a fidedignidade das demonstrações financeiras.
Portanto, em ambos os casos, seja diante de multas operacionais, seja diante do take or pay, há mais do que simples obrigações acessórias do contrato. Há riscos contábeis concretos que exigem tratamento técnico, registro adequado e, principalmente, integração entre as áreas da empresa.
O contador, diante desse cenário, não deve ser apenas o responsável por lançar valores, mas sim o agente que identifica, qualifica e comunica os impactos dessas obrigações, tanto à gestão quanto aos auditores e demais stakeholders.
Um contrato mal interpretado ou com riscos mal registrados pode gerar distorções relevantes na precificação de ativos, na avaliação de riscos em operações de M&A e em processos de captação de recursos.
No atual ambiente de conformidade, ESG e transparência regulatória, registrar corretamente é apenas o começo. Prevenir a recorrência, interpretar o contrato, entender a operação e orientar a tomada de decisão são funções estratégicas do contador diante dos riscos do gás canalizado.
Afinal, quando a penalidade vai além da multa, o impacto pode atingir não só o resultado do exercício, mas a própria credibilidade da empresa perante o mercado.
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