9 de junho de 2025
Por Cid Tomanik
A cláusula "Take or Pay" (ToP) constitui um dos principais instrumentos contratuais para garantir segurança financeira nos contratos de fornecimento de gás natural. Ela obriga o comprador a pagar por um volume mínimo de gás, mesmo que não o consuma integralmente.
Essa estrutura é amplamente aceita no ambiente internacional e justifica-se pelos investimentos significativos realizados na produção e infraestrutura de transporte do gás.
No entanto, sua aplicação nos contratos de distribuição de gás canalizado exige atenção especial, uma vez que envolve concessionárias de serviço público, sujeitas a regulação e à imprevisibilidade da demanda dos usuários finais.
O presente artigo tem como objetivo analisar os aspectos jurídicos e regulatórios da cláusula de recuperação de volumes pagos e não consumidos nos contratos de distribuição de gás canalizado, destacando sua importância para o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e sua crescente judicialização.
A cláusula ToP foi concebida como forma de garantir o retorno sobre investimentos do fornecedor, transferindo ao comprador o risco da demanda. Internacionalmente, a cláusula é aceita, mas nunca de forma isolada, sua validade está sempre condicionada à existência da cláusula de recuperação, que permite a compensação futura dos volumes pagos e não consumidos.
O pagamento mínimo obrigatório, ainda que sem consumo efetivo, assegura o fluxo de caixa necessário para remunerar o capital empregado. Em mercados livres, essa lógica é compreensível. Contudo, quando a distribuidora atua como concessionária de serviço público, a transposição automática dessa cláusula para seus contratos de fornecimento torna-se problemática.
A distribuidora de gás canalizado adquire volumes junto ao fornecedor para revenda aos consumidores finais. Sua receita é determinada por tarifas reguladas e pela demanda do mercado, não tendo controle direto sobre o volume efetivamente consumido.
O risco de inadimplência por baixa demanda acaba sendo transferido à distribuidora, que pode ser obrigada a pagar por volumes não retirados, mas sempre existe a previsão de compensação futura.
Não existe, no mundo, contrato de fornecimento de gás natural que preveja apenas a cláusula de take or pay. Esses contratos são necessariamente acompanhados de cláusulas de recuperação de volumes. Ou seja, o pagamento mínimo obrigatório está, invariavelmente, vinculado à possibilidade de o comprador compensar os volumes pagos e não consumidos em um período posterior. Essa prática é universal e representa o modelo contratual que garante o equilíbrio entre a previsibilidade de receita do fornecedor e a razoabilidade econômica para o comprador.
Nesse contexto, os contratos de distribuição de gás canalizado, que envolvem tanto a molécula quanto o uso do sistema de distribuição (TUSD), deveriam seguir o mesmo padrão contratual. Isso porque, na essência, também envolvem uma relação de fornecimento em que há risco de variação de demanda e necessidade de amortização de custos fixos.
A cláusula de recuperação, também chamada de "make-up gas", consiste na possibilidade de que os volumes pagos e não consumidos em determinado período possam ser compensados com retiradas futuras. Essa cláusula reduz significativamente o impacto financeiro da ToP, ao permitir que o pagamento antecipado não se perca por completo, mas seja convertido em consumo posterior.
O mecanismo é fundamental nos contratos de distribuição, pois oferece uma forma de mitigar o risco que decorre da imprevisibilidade da demanda. A ausência dessa cláusula torna a ToP excessivamente onerosa e pode comprometer o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, gerando repercussões tanto contratuais quanto regulatórias.
No Brasil, a experiência prática revela disparidades. Em contratos firmados sob influência da Petrobrás no início dos anos 2000, havia previsão de recuperação. Já em contratos influenciados pela antiga CSPE (hoje ARSESP), a cláusula ToP era tratada como penalidade contratual definitiva, sem compensação futura.
Os usuários, inclusive os consumidores livres ou cativos que tenham firmado contratos com distribuidoras de gás canalizado que preveem cláusula de take or pay sem a correspondente cláusula de recuperação, poderão buscar no Judiciário a validade, a proporcionalidade e a possibilidade de compensação futura dos valores pagos por volumes não consumidos.
O debate é fundamental para garantir segurança jurídica ao setor, preservando tanto o equilíbrio contratual quanto a continuidade e modicidade dos serviços prestados.
Em 2001, tive a oportunidade de participar da primeira reunião sobre a cláusula Take or Pay na Agência Reguladora do Estado de São Paulo. À época, já se manifestavam preocupações quanto ao equilíbrio dos contratos celebrados no âmbito da distribuição de gás canalizado. Desde então, venho acompanhando de perto a evolução técnica, jurídica e regulatória dessa importante temática para o setor.
A cláusula de recuperação nos contratos de distribuição de gás canalizado representa uma evolução contratual necessária diante da complexidade do setor e da função pública desempenhada pelas distribuidoras. Sua inclusão permite maior previsibilidade, reduz litígios e assegura o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, em conformidade com os princípios do direito regulatório.
O debate judicial sobre a validade e a proporcionalidade das cláusulas ToP sem recuperação é indispensável para a segurança jurídica e para o desenvolvimento sustentável do setor de gás canalizado. À medida que o mercado brasileiro se abre à concorrência, espera-se maior flexibilidade contratual e maior atenção às peculiaridades das relações concessionárias, equilibrando os interesses públicos e privados.
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