3 de junho de 2025
Por Cid Tomanik - linkedin
A história da regulação do gás natural no Brasil tem sido marcada por avanços importantes, especialmente quando se trata de levar o insumo a regiões ainda não atendidas por gasodutos. Uma dessas ferramentas regulatórias é o chamado Projeto Estruturante com GNC, que recentemente ganhou nova forma jurídica com a publicação da Resolução ANP nº 973, de 26 de julho de 2024¹.Essa norma substituiu a antiga Resolução ANP nº 41/2007² e trouxe clareza e amadurecimento a um modelo logístico que já vinha sendo adotado na prática, sobretudo por concessionárias estaduais.
Com a nova regulamentação, o Projeto Estruturante com GNC deixa de ser uma figura genérica para se tornar uma modalidade jurídica bem delimitada, atrelada diretamente à atuação das concessionárias estaduais de gás canalizado.
A definição trazida no art. 2º, inciso XVIII da nova resolução é inequívoca: trata-se de um projeto de interesse da concessionária estadual, destinado ao acondicionamento e movimentação de GNC por modais alternativos ao dutoviário, entre suas próprias instalações.
Na prática, isso significa reconhecer que a distribuição de gás pode acontecer, de forma planejada e regulada, mesmo sem a presença de um gasoduto físico.
O entendimento representa uma guinada relevante, pois exclui do escopo desse tipo de projeto empresas privadas independentes, que, até então, podiam atuar com maior liberdade na distribuição a granel de GNC.
O Projeto Estruturante passa a ser visto como uma extensão técnica e operacional da concessão pública, mantendo a natureza jurídica de serviço público estadual, conforme previsto na Constituição Federal.
Durante os anos em que a regulação ainda estava em formação, o setor costumava empregar a expressão "gasoduto virtual" para se referir a esse tipo de operação. O termo, embora informal, traduzia bem a ideia de se emular um gasoduto físico utilizando carretas e módulos móveis, capazes de transportar gás comprimido de uma unidade de compressão até pontos de descompressão e consumo.
A solução foi essencial para viabilizar o fornecimento de gás natural em regiões ainda sem infraestrutura dutoviária instalada, como polos industriais emergentes e municípios do interior.
A própria ANP chegou a adotar o termo em eventos e documentos institucionais. Um exemplo marcante foi o Workshop promovido pela agência em 27 de novembro de 2020³, no qual a Superintendente de Infraestrutura e Movimentação, Erica Vanessa Albuquerque de Oliveira, apresentou as diretrizes regulatórias da época, baseadas ainda na Resolução nº 41/2007. Naquela ocasião, ficou evidente o reconhecimento da importância dos Projetos Estruturantes como instrumentos de expansão do mercado de gás no país, alinhados ao programa federal do Novo Mercado de Gás.
Tive a oportunidade de acompanhar esse processo de perto. Em 2006, participei da equipe da Gás Brasiliano Distribuidora, atual Necta Gás, responsável por estruturar uma das primeiras operações de antecipação de rede com GNC no Estado de São Paulo.
Atuando como Gerente Jurídico da concessionária, trabalhei ao lado de José Antonio Jaques Neto (Gerente Comercial) e Ronaldo Kohlmann (in memoriam, Gerente de Suprimentos e Contratos Especiais) no desenvolvimento de uma solução pioneira: transportar gás comprimido entre Araraquara e Ribeirão Preto, utilizando carretas como alternativa temporária até a conclusão do gasoduto convencional.
Foi um projeto ousado e inovador, que nos permitiu atender, de forma segura e contínua, uma demanda industrial crescente na região.
Mais do que uma solução logística, tratava-se de um movimento regulatório concreto: um caso prático que antecipava os conceitos que seriam formalizados pela ANP apenas no ano seguinte, com a Resolução nº 41/2007, e que agora ganham nova roupagem jurídica na Resolução nº 973/2024. Mesmo que a expressão "gasoduto virtual" tenha perdido espaço na linguagem regulatória, o conceito permanece vivo e relevante, representando uma alternativa real de suprimento planejado, seguro e juridicamente inserido no regime da concessão estadual.
É importante destacar que essa linha de interpretação não surgiu do nada. Já em 2005, o Estado de São Paulo havia dado um passo adiante ao editar a Portaria CSPE nº 397⁴, por meio da então Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), hoje ARSESP.
A norma foi determinante ao reconhecer que o transporte de GNC por carretas, realizado entre instalações da concessionária estadual, não descaracterizava a natureza do serviço público. Ela foi a primeira norma estadual a afirmar, com clareza, a compatibilidade entre o regime de concessão e o uso de modais alternativos para levar gás ao consumidor final.
O marco paulista serviu de base para a formulação da Resolução ANP nº 41/2007. A regulação federal acabou por incorporar, em essência, os fundamentos da experiência paulista, reconhecendo que o fornecimento de gás fora do sistema de dutos poderia ser compatível com o regime jurídico da concessão, desde que fosse feito de forma planejada, segura e autorizada. A convergência entre regulação estadual e federal foi, desde então, um dos pilares para a consolidação dos Projetos Estruturantes no Brasil.
A Resolução ANP nº 973/2024 representa, nesse sentido, uma continuidade qualificada. Ela atualiza o conceito, reafirma sua vinculação à concessão estadual e aperfeiçoa os critérios técnicos, operacionais e jurídicos.
Com isso, reforça-se o papel das distribuidoras estaduais como protagonistas na expansão do mercado de gás natural, especialmente em um país com dimensões continentais e tantas desigualdades regionais de acesso à infraestrutura.
Na prática, os Projetos Estruturantes permitem que o gás chegue aonde os dutos ainda não chegaram. Seja por meio de carretas, seja por trens ou barcaças, o importante é que a prestação do serviço público de gás canalizado aconteça de forma segura, regulada e eficiente. Cabe às distribuidoras o papel de planejadoras e executoras dessas soluções, com o apoio das agências estaduais e da ANP.
A experiência paulista, iniciada com a Portaria CSPE nº 397/2005 e colocada em prática com a operação Araraquara–Ribeirão Preto, mostra que o modelo é viável e juridicamente sólido. Ao antecipar os fundamentos que hoje orientam a Resolução ANP nº 973/2024, São Paulo assumiu uma posição de vanguarda na incorporação do GNC como ferramenta legítima e complementar à rede canalizada.
Que essa experiência sirva de referência para outras regiões e contribua para a construção de um mercado de gás mais acessível, competitivo e integrado ao desenvolvimento nacional.
¹ AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS – ANP. Resolução nº 973, de 26 de julho de 2024. Dispõe sobre o acondicionamento e movimentação de gás natural comprimido a granel. DOU de 29 jul. 2024.
² ANP. Resolução nº 41, de 5 de novembro de 2007. Revogada.
³ ANP. Workshop sobre Gás Natural Comprimido (GNC). Superintendência de Infraestrutura e Movimentação, 27 nov. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-eventos/anp-apresentacao-workshop-gnc.pdf.
⁴ SÃO PAULO (Estado). Comissão de Serviços Públicos de Energia – CSPE. Portaria nº 397, de 12 de dezembro de 2005. DOE-SP de 14 dez. 2005.
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