Desindustrialização precoce: futuro ou presente do Brasil?
O que se entende por desindustrialização precoce?
A desindustrialização precoce é a variante patológica da
chamada “desindustrialização positiva”. Quando a industrialização completou com
êxito o processo do desenvolvimento e elevou a renda per capita a nível elevado
e auto-sustentável, o setor manufatureiro começa a declinar, em termos
relativos, como proporção do produto e do emprego. Isso ocorre em contexto de
crescimento rápido e pleno emprego, no momento em que se atinge renda per
capita entre $ 8,000 e $ 9,000, medidos em preços constantes de 1986, correspondendo
hoje a valores nominais bem mais altos. O fenômeno é patológico quando aparece
em economias onde a renda per capita é menos da metade ou até de um terço desse
nível e em contexto de baixo crescimento e desemprego de massa. Nesse caso, o
processo de industrialização abortou antes de dar nascimento a uma economia
próspera de serviços, capaz de absorver a mão de obra desempregada pela
indústria. É a “construção interrompida” do título do livro de Celso Furtado.
Onde ocorre o fenômeno?
Ele vem ocorrendo em numerosas economias da Africa, América
Latina e do Oriente Médio no curso dos últimos 25 anos, desde a crise da dívida
externa dos anos 80s. Em 2003, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD) estudou o que vinha acontecendo no relatório Comércio
e Desenvolvimento (Trade and Development Report) daquele ano, que pode ser
encontrado e obtido no site da UNCTAD: www.unctad.org.
Qual foi o resultado do levantamento?
A UNCTAD chegou à conclusão de que, em relação a esse
problema, as economias em desenvolvimento poderiam ser divididas em cinco
grandes categorias, a saber:
O grupo original e mais avançado dos “tigres” asiáticos
(Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong), principalmente a Coréia do Sul
e Taiwan, que já atingiram nível adiantado de maturidade industrial por meio de
rápida acumulação de capital, crescimento do emprego em geral, da produtividade
e do emprego industriais, assim como das exportações de manufaturas. Nessas
economias, a porcentagem da produção industrial no PIB é bem superior à dos
velhos países industrializados mas o rítmo da expansão da capacidade produtiva
e da produção no setor industrial desacelerou-se muito em comparação ao que
ocorria em décadas passadas.
O segundo grupo, também maciçamente asiático, inclui a
Malásia e a Tailândia, bem como, em nível menos avançado, a China e, em grau
menor, a India. São os países que, há várias décadas, vêm se industrializando
de modo acelerado, aumentando a proporção de manufaturas no emprego, na produção
e nas exportações, ao mesmo tempo em que estão transformando sua estrutura,
passando dos produtos intensivos em mão de obra e recursos naturais para os
artigos de média e alta tecnologia.
O terceiro abrange os países que se integraram nas redes
internacionais de produção mediante a concentração em operações intensivas em
mão de obra destinadas à montagem de produtos cujos insumos são em grande parte
importados. O México e as Filipinas, bem como, mais recentemente, países do
Caribe e da América Central signatários de acordos de livre comércio com os
Estados Unidos, destacam-se na categoria. Tais economias tiveram rápido aumento
no emprego industrial (o desemprego no México, por exemplo, é bem inferior ao
da média da Argentina, do Brasil e do Chile). Outra característica do grupo é o
veloz aumento de exportação de manufaturas. Não obstante, esses países vêm
apresentando desempenho modesto em termos de investimento, de valor agregado em
manufaturas, de crescimento da produtividade e de crescimento econômico de
maneira geral.
A quarta classe é a dos países que alcançaram um nível
razoável de industrialização mas se revelaram incapazes de sustentar um
processo dinâmico de aprofundamento industrial em contexto de crescimento
rápido. É o caso da Argentina e, em nivel muito menos grave, o do Brasil, onde
tem sido pobre o desempenho do investimento, a indústria vem perdendo
importância relativa no emprego total e no valor adicionado, o crescimento da
produtividade resultou mais da redução da mão de obra que da acumulação rápida
e do progresso técnico, o upgrading industrial é ainda limitado e as
exportações continuam dominadas por produtos primários e manufaturas de baixo
valor agregado. Nessas economias, o avanço em certas indústrias como a
aeronáutica e de automóveis não teve a profundidade e o vigor necessários para
disseminar-se pelo restante do tecido industrial e para estabelecer um processo
dinâmico e de alta tecnologia na indústria como um todo.
O quinto grupo é o de países que obtiveram crescimento forte
e sustentado mediante a intensificação da exploração de seus recursos naturais
abundantes através de um rítmo acelerado de acumulação de capital. O exemplo
mais notável é o do Chile. No entanto, essas economias têm demonstrado
desempenho fraco em termos de valor agregado em manufaturas e de exportações
industriais, persistindo nelas elevado desemprego. Parecem limitadas as
perspectivas de mudança estrutural adicional e de futuro crescimento de
produtividade na base exclusiva de estratégia fundamentada nos recursos
naturais.
O que emerge dessa análise comparativa?
O contraste entre a Asia do Leste e a América Latina é
marcante. Todos os países maiores da América Latina (Argentina, Brasil, México)
situam-se em grupos sem dinamismo em industrialização, mudança estrutural e
aumento da produtividade, ao passo que a maioria das economias do leste
asiático se encontra em vários estágios de industrialização de êxito.
Persistem, portanto, as fraquezas estruturais que, a partir dos anos 80s, deram
impulso a radicais mudanças de política na América Latina. Apesar dos avanços
indiscutíveis, não há como negar que as reformas de políticas não conseguiram
criar as condições necessárias para iniciar um rápido processo de acumulação de
capital e de transformação tecnológica capaz de reestruturar as economias
latino-americanas com vistas a enfrentar os desafios de integração no sistema
globalizado de comércio. Tudo indica que existe relação nítida entre o
prosseguimento e adensamento da industrialização e a criação dessas condições.
Não se poderia afirmar, ao contrário, que a
desindustrialização é a consequência positiva do abandono da política de
substituição de importações e da adoção de estratégia voltada para as
exportações, permitindo a melhor alocação de recursos a setores nos quais essas
economias são mais competitivas, como no de recursos naturais em agricultura e
mineração?
Essa afirmação seria verdadeira se o declínio relativo da
indústria tivesse coincidido com a aceleração significativa do crescimento, o
que, de fato, ocorreu no Chile, mas não na Argentina, no Brasil e no México.
Além disso, a comparação com economias européias ricas em recursos naturais
como algumas da Escandinávia indica que, até mesmo no Chile, a porcentagem do
emprego industrial no final dos anos 90s se situava apenas entre a metade e um
terço do nível atingido pelos escandinavos, quando estes se encontravam em
patamares de renda comparáveis. Nessas economias escandinavas ricas em recursos
naturais, essa porcentagem só começou a cair a partir de nível de renda muito
superior ao que sucedeu na América Latina.
Isso significa que não existiriam exemplos de países que
alcançaram o desenvolvimento pleno sem industrialização, exclusivamente na base
da exploração eficiente de recursos naturais?
Na verdade, a experiência histórica confirma que as
economias de países como a Austrália, o Canadá e de alguns dos escandinavos,
que utilizaram mais amplamente as exportações de produtos primários para
atingir altos níveis de renda, passaram todas por períodos de forte
desenvolvimento e diversificação da indústria como componentes essenciais de
sua estratégia de crescimento. Mesmo as cidades-estados do nosso tempo – Hong
Kong e Cingapura – hoje predominantemente economias de serviços, recorreram no
início e por longo tempo à industrialização a fim de superar a estreiteza do
mercado nacional e para deslanchar o processo de desenvolvimento.
De que maneira opera a industrialização nesse processo?
Em longo prazo, são as conquistas de produtividade que
asseguram o êxito econômico e não apenas a acumulação de capital por si mesma.
Um processo virtuoso de acumulação e crescimento sustentado está sempre
associado a mudanças estruturais na produção e no emprego como resultado tanto
da expansão e diversificação das atividades econômicas, passando da agricultura
à indústria e desta aos serviços, quanto da evolução para atividades de maior
valor adicionado dentro de cada setor, mediante a introdução de novos produtos
e processos.
Há diferenças sensíveis entre os vários setores em termos
dos respectivos potenciais para o progresso técnico e para o crescimento da
produtividade. A importância de estabelecer uma ampla base industrial deriva
justamente do grande potencial da indústria para um forte crescimento da
produtividade e da renda. Esse potencial provém, do lado da oferta, da
predisposição da indústria para desenvolver economias de escala, para a
especialização e o aprendizado e, do lado da demanda, de condições globais de
mercado e de preços habitualmente mais estáveis e favoráveis do que para os
produtos primários, sujeitos a frequentes oscilações e com certa tendência a um
declínio secular. Trabalhos de Kaldor e Kuznets demonstraram a existência de
estreita corrrelação entre as taxas de crescimento da industrialização e da
produtividade, assim como entre a aceleração do crescimento e o deslocamento do
fator trabalho, do setor primário, de baixa produtividade, para o industrial,
de produtividade mais elevada. Não se deve esquecer, aliás, que a agregação de
valor a produtos primários da agropecuária e da mineração se faz geralmente
mediante processos industriais, daí se originando denominações como
agro-indústria, indústria agro-alimentícia etc.
Mas, se as vantagens de manter forte base industrial são tão
evidentes, como se explica que os países latino-americanos se tenham resignado
a sacrificá-la em muitos casos?
A explicação reside, em última análise, no impacto da crise
da dívida dos 80s, verdadeiro divisor de águas que desviou, de maneira
duradoura, muitos países da trajetória de desenvolvimento que até então vinham
seguindo. Os latino-americanos tiveram de adotar drásticas mudanças de política
econômica, no esforço para reduzir os níveis de endividamento e controlar
inflações que ameaçavam deteriorar em hiperinflações. Embora tenha sido
inegável o êxito em atingir alguns desses objetivos, as reformas nunca foram
capazes de fazer com que o nível de investimento retornasse à fase pré-crise.
De modo geral, a América Latina parece haver estabilizado seu nível de formação
de capital em torno do investimento por ano de apenas 20% ou menos do PIB,
significativamente inferior aos 25% considerados como o ideal para economias em
estágio intermediário de desenvolvimento e igualmente muito abaixo da média do
investimento prevalecente na fase pré-crise.
Tal situação de debilidade macroeconômica, de investimento
insuficiente e de instabilidade permanente de taxas de juros e de câmbio
preparou mal as economias latino-americanas para o “choque de competição”
decorrente da liberalização comercial e financeira simultânea ao processo de
ajuste. Inúmeros setores, especialmente na indústria manufatureira, não foram
capazes, devido ao estado critico em que se encontravam, de reagir à
concorrência de produtos importados no momento em que perderam a proteção. O
processo latino-americano de abertura de choque, conduzido em fase de crítica
precariedade da situação macroeconômica, contrasta com o das economias
asiáticas, muito mais gradual, progressivo, seguro e realizado a partir de
posição de força, por economias capazes de investir 30% ou mais do PIB
anualmente e bafejadas por juros extremamente baixos, frequentemente
subsidiados, por taxa de câmbio desvalorizada, carga tributária pequena e
mínimos encargos trabalhistas e previdenciários.
Não é verdade, então, que a situação macroeconômica da
região melhorou?
Não até o ponto desejável. De fato, uma saudável macroeconomia
exige não apenas estabilidade de preços, mas outras condições indispensáveis
para propiciar níveis elevados de investimento. Muitas das condições que
exercem forte influência nas decisões de investimento e de alocação de
recursos, incluindo preços-chaves tais como a taxa de câmbio, a taxa de juros e
os salários reais, de grande impacto na demanda agregada, têm sido extremamente
instáveis no continente. Isso se deve, em parte, ao aumento da instabilidade do
sistema internacional de pagamentos e à volatilidade externa associados com
choques financeiros e comerciais. Por outro lado, alguma responsabilidade cabe
igualmente à perda de autonomia em matéria de política macroeconômica
resultante da rápida liberalização e da estreita integração nos mercados
financeiros globais. Além disso, em lugar de “get the prices right”, as forças
de mercado tenderam a manter as taxas de juros e de câmbio em níveis que
impediram a rápida acumulação de capital e a mudança tecnológica. Em outras
palavras, a nova estratégia econômica fracassou em produzir um meio-ambiente
macroeconômico apropriado para encorajar investidores e empresas, apoiando-os
na criação e expansão da capacidade produtiva e no aprimoramento da
produtividade e da competitividade internacional.
Não se poderia descrever o que aconteceu na América Latina
como mais uma manifestação do processo de “destruição criativa” de Schumpeter?
Seria difícil argumentar nesse sentido. Durante a fase de
ajustamento pós-crise da dívida, estima-se que cerca de 7.000 firmas chilenas
desapareceram, a maioria de porte médio. Na Argentina, esse número foi de l5.
000. Muitas foram substituídas por grandes empresas estrangeiras cujos setores
de engenharia e de pesquisa e desenvolvimento se encontravam no país de origem.
Algo similar ocorreu no Brasil com a aquisição por firmas estrangeiras de boa
parte do setor de autopeças ( Cofap, Metal Leve ) e do setor eletrônico e de
equipamento de telecomunicações sediado em Campinas. De novo, em muitos casos,
o setor de pesquisa foi radicalmente reduzido ou teve sua natureza alterada,
passando a ocupar-se apenas da adaptação da tecnologia da matriz a condições
locais, o que se chama no jargão de “tropicalização” da tecnologia. Engenheiros
de pesquisa foram reciclados em gerentes de vendas. Um estudo de Cimoli e Katz
observa que, em 1974, o lançamento do Taurus pela Ford Argentina demandou
300.000 horas de trabalho por uma equipe de 120 engenheiros, ao passo que hoje,
para produzir o “world car”, a Ford não emprega nenhum engenheiro na Argentina.
O que houve, portanto, foi que a parte de “destruição” ocorreu na Argentina,
enquanto a parte mais interessante, a da “criação”, foi transferida para o país
exportador ou sede da empresa transnacional.
O problema foi agravado por algumas das privatizações de
empresas estatais que, em certos países, eram responsáveis, juntamente com
universidades e instituições públicas, por 80% dos gastos em pesquisa
tecnológica, em áreas como as telecomunicações e energia, como era o caso do
Brasil. Frequentemente, repetiu-se aqui o padrão de muita destruição e pouca
criação. O balanço líquido foi um retrocesso na geração local de tecnologia e o
aumento de uma dispendiosa dependência tecnológica em relação ao estrangeiro.
Essa foi uma das razões que levaram a uma mudança na composição da produção e
das exportações de países da região, que se concentraram mais ainda do que no
passado nos produtos oriundos de recursos naturais, distanciando-se dos setores
com maior potencial de aumento da produtividade. Não é de admirar, nessas
condições que, fora exemplos esporádicos como o da indústria aeronáutica, cuja
existência, aliás, se deve a uma política de Estado, seja extremamente limitada
a oferta de países como o Brasil em matéria de manufaturas de alta tecnologia e
valor agregado capazes de competir com os produtos asiáticos em mercados
altamente competitivos como os dos Estados Unidos e dos países europeus.
Que tipos de indústrias conseguiram sobreviver a essas
condições adversas?
Como é sabido, muitas das indústrias de ponta, responsáveis
pelos produtos mais dinâmicos do comércio mundial – computadores, componentes
eletrônicos, máquinas e equipamentos de escritório, química fina, fármacos –
praticamente desapareceram do panorama produtivo da América Latina, salvo sob o
aspecto de linhas de montagem. O que sobrou foi basicamente: a) indústrias de
processamento de recursos naturais a fim de produzir commodities industriais,
tais como papel, celulose, suco de laranja, farelos e óleos vegetais, ferro,
aço, alumínio, metais, cimento; b) indústrias de alimentos, de material de
limpeza, cosméticos, de móveis etc; c) linhas de montagem de equipamento
eletrônico, aparelhos de TV e vídeo, de telecomunicações como os telefones
celulares; d) indústrias têxteis, de vestuário e calçados, crescentemente
pressionadas pela concorrência chinesa; e) petroquímica em alguns países,
graças à significativa proteção tarifária; f) indústria de automóvel e de
equipamento de transporte, objeto de tratamento protetivo especial, às vezes no
contexto de acordos subregionais como o Mercosur. Fora poucas exceções, como a
da indústria automobilística, esses não são em geral os tipos de setores que
desempenham papel decisivo para aumentar a competitividade internacional por
meio da pesquisa e desenvolvimento de produtos e do progresso tecnológico.
No caso do Brasil, o panorama é mais diversificado, já que o
país foi capaz de preservar estrutura industrial bem mais ampla e completa do
que na maioria de outras nações do continente. Essa estrutura, felizmente para
nós, inclui até mesmo um setor bastante razoável de bens de capital, maquinária
e equipamento. Alguns ou muitos desses setores sofrem hoje outro tipo de
“choque de competição”, o da concorrência chinesa, que opera como uma espécie
de segunda geração de pressões e desafios em relação ao primeiro impacto da
liberalização dos anos 90s. A sobrevivência até o instante de base industrial
mais diversificada no Brasil é razão a mais para identificar políticas e
medidas de indiscutível qualidade econômica, que sejam capazes de evitar que a
indústria, sobrevivente do primeiro choque, não se afogue agora no segundo.
O processo de rápida liberalização produziu na América
Latina dois padrões específicos, mas contrastantes na especialização
industrial. Os países mais estreitamente ligados ao mercado dos Estados Unidos,
seja pela vizinhança geográfica, seja por acordos comerciais, se concentraram
nas indústrias de linha de montagem tipo maquiladoras que produzem quase
exclusivamente para o mercado americano ou para reexportação para terceiros a
partir dos EUA, criando empregos de baixa especialização e modestos salários. Por
outro lado, as economias da América do Sul tais como as da Argentina, do Chile
e, com as qualificações e diferenças acima expostas, no exemplo particular do
Brasil, expandiram as indústrias baseadas em recursos naturais, aumentando a
intensidade em capital de tais atividades, mas sem impacto correspondente na
geração de empregos. Ambos os tipos de atividades possuem conteúdo
relativamente baixo de valor agregado interno e nenhuma delas proporciona o
gênero de transformação da produção nacional e do padrão exportador capaz de
fazer do comércio um motor de crescimento.
O que fazer?
Acima de tudo, evitar fórmulas simplistas e simplórias.
Como, por exemplo, a do famoso “choque de competitividade” de vez em quando
ressuscitada por assessores do Ministério da Fazenda e gente vinculada ao
mercado financeiro. A última versão foi a da redução substancial das tarifas
industriais. Embora pareça supérfluo, não custa repetir que é absurdo falar de
“choque de competitividade” no momento em que o setor produtivo enfrenta no
Brasil condições incomensuravelmente mais adversas do que os concorrentes
potenciais em todos os fatores-chaves determinantes da competitividade
internacional, a saber, a taxa de juros, a taxa de câmbio, a carga tributária e
o custo de transação resultante da infraestrutura de serviços.
Um fenômeno de causas tão complexas e variadas como é a
desindustrialização precoce só poderá ser combatido por terapêutica igualmente
diversificada, que contenha ingredientes capazes de atacar as raízes
macroeconômicas descritas acima, assim como os problemas de diferente natureza
aqui exemplificados na área de ciência e tecnologia, de pesquisa e
desenvolvimento de produtos, de inovação etc. Identificar os diversos
componentes de tal terapêutica é precisamente o objetivo do seminário que se
realizará na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), no
próximo dia 28 de novembro. Nessa ocasião, um dos mais importantes objetivos
seria estimular um esforço sistemático e constante com vistas a valorizar o
papel transformador e de liderança da indústria manufatureira no processo de
desenvolvimento, reatando com a tradição de pioneiros como Roberto Simonsen e
Euvaldo Lodi. Para isso, será indispensável reagir contra o verdadeiro
preconceito que, consciente ou inconscientemente, se criou contra o setor,
voltando a dar-lhe condições normais para poder concorrer internacionalmente e
sobreviver no âmbito interno.
Um elemento indispensável em tal sentido é uma estratégia
para as negociações internacionais que não aumente ainda mais as dificuldades
que já enfrenta em função das condições hostis de juros, câmbio e tributos
internos. Esse perigo existe não só nas negociações de acordos de livre
comércio como nas da Rodada Doha, da Organização Mundial de Comércio (OMC).
Nestas últimas, ficou claro nas semanas recentes que a tática dos “usual
suspects” em matéria de protecionismo agrícola (França et caterva) é repetir o
bem-sucedido jogo utilizado na Rodada Uruguai: alegar a impossibilidade de
qualquer movimento em agricultura se não houver antes concessões substanciais
do Brasil principalmente, da India e de alguns outros em NAMA ou
Non-Agricultural Market Access, isto é, em produtos industriais (e também em
serviços). Conforme se sabe, pagamos, naquela ocasião, preço altíssimo em
reduções tarifárias industriais, propriedade intelectual, medidas de
investimento relacionadas ao comércio (como a proibição do conteúdo local ou
índice de nacionalização no processo manufatureiro), em perda de flexibilidade
ou “policy space” para adotar políticas de estímulo à indústria, de amplo e
irrestrito uso pelos países avançados quando ainda se encontravam em fase de
industrialização. Nossos ganhos em agricultura, em compensação, foram modestos
e mais conceituais do que concretos.
No momento, algumas das fórmulas propostas em Genebra por
países desenvolvidos implicariam reduções, da parte de países em
desenvolvimento, de mais de dois terços na média ponderada das tarifas
aplicadas e de mais de três quartos dos níveis atuais da média ponderada de suas
tarifas consolidadas. Conforme tem sido demonstrado nos estudos recentes dos
economistas da UNCTAD, S.F.Fernández de Cordoba, Sam Laird e David Vanzetti,
tais reduções constituiriam cortes incomparavelmente mais profundos do que os
efetivados pelos principais países ricos ao longo dos 30 anos após a Segunda
Guerra Mundial. A experiência histórica indica que, no processo de
industrialização, o que conta não é tanto o nível médio das tarifas, mas seu
perfil setorial. A tarifa ideal é a desenhada para proteger o processo de
aprendizagem e de aquisição de competitividade nos setores dinâmicos, não nas
indústrias em declínio. Um dos fatores que diferenciaram a Coréia do Sul e
Taiwan e explicam o êxito da industrialização dessas duas economias foi
justamente uma estrutura tarifária racional inspirada no princípio da proteção
seletiva e temporária (Yilmaz Akyuz, The WTO Negotiations on Industrial
Tariffs: What is at Stake for Developing Countries, TWN, Penang, Malaysia,
2005).
Essa verdade nos aconselha extrema cautela nas atuais
negociações, uma vez que as fórmulas mais favorecidas pelos negociadores
representariam perdas substanciais e súbitas de proteção em setores como o
automobilístico e o eletrônico, exatamente os que apresentam as características
desejáveis de dinamismo e alta capacidade multiplicadora de efeitos benéficos
para a indústria como um todo.
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*Rubens Ricupero é Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais
pela Faculdade de Direito de São Paulo, diplomata de carreira, lotado em
Brasília, Viena, Buenos Aires, Genebra e Washington (entre outras cidades), foi
professor de Teoria das Relações Internacionais na UnB, foi Ministro da Fazenda
(1994), foi Embaixador Permanente em Genebra, Washington e Roma e foi
Secretário-Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD), mandatos de 1995 a 1999 e de 1999 a 2004 e
Subsecretário Geral da ONU no mesmo período.
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Nota: Salvo algumas observações pessoais, sobretudo em
relação ao Brasil, o presente trabalho é, em grande parte, extraído do 2003
Trade and Development Report da UNCTAD, época em que desempenhei as funções de
Secretário Geral da Organização. Busquei aqui organizar e sintetizar as
principais teses e demonstrações do relatório, com ênfase nos capítulos IV
(Economic Growth and Capital Accumulation), V (Industrialization, Trade and
Structural Change), e VI (Policy Reforms and Economic Performance: the Latin
American Experience). O mérito do trabalho cabe aos redatores do relatório,
dentre os quais o Dr. Yilmaz Akyuz, então Diretor da Divisão sobre Globalização
e Estratégias de Desenvolvimento e Chief Economist da UNCTAD e a seus
principais colaboradores, Richard Kozul-Wright e Jorg Meyer.
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